quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

TRÁFICO DE ÓRGÃOS

O estudante Roberto das Dores bem que desconfiou quando a loira de botas matadoras e seios saltitantes que ele havia acabado de conhecer sugeriu emendar a noite no motel. Mas achou que a oportunidade valia o risco. No quarto, aceitou um drinque antes de ir para a cama e, puf, tudo escureceu. 



Ele só voltou a si na manhã seguinte, dentro de uma banheira cheia de gelo, com cicatrizes no lugar que, outrora, recobria um de seus rins. A polícia localizaria os rins de Roberto três dias depois, guardados numa caixa de isopor ao lado do coração de Lúcia, que se perdera dos pais no shopping, e dos pulmões do órfão Pedrinho, adotado por um casal de estrangeiros. 

Roberto, Lucia e Pedrinho nunca existiram. Loiras - ou morenas, ou asiáticas, ou negras - apetitosas que roubam rins em motéis são tão irreais quanto traficantes de órgãos que sequestram crianças em shopping centers ou frequentam orfanatos do Terceiro Mundo. Um simples exercício de lógica mostra como essas teorias de conspiração são frágeis, mas vistosas, feito cenário de bangue-bangue. 

"Transplante não é um aborto que se possa fazer numa garagem", afirma o nefrologista - especialista em rins - Valter Duro Garcia, presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). "É um procedimento complexo, que dificilmente poderia dar certo fora de um centro cirúrgico com uma equipe treinada de médicos e enfermeiros." 

Mesmo que um bilionário acometido de insuficiência renal resolvesse montar um hospital com mão-de-obra capacitada, o roubo de órgãos continuaria a não ser a melhor opção. Não haveria como saber se o estudante sedado no motel tinha sangue compatível com o do receptor. Assaltar cadáveres como os da foto que abre esta reportagem também não seria uma alternativa viável, já que, com exceção das córneas, a maioria dos órgãos torna-se imprestável assim que o coração para de bater.


                                                            AÇOUGUE HUMANO | De onde vêm e para onde vão os órgãos                                                             transplantados ilegalmente

Oculta sob lendas urbanas, a verdadeira cara do tráfico é tão espetacular quanto qualquer boato. Tome como exemplo uma investigação da Polícia Federal no Recife, realizada em dezembro de 2003. A Operação Bisturi revelou que uma quadrilha liderada por um militar israelense sobrevivente do Holocausto e um capitão reformado da Polícia Militar obteve rins de moradores da periferia da capital pernambucana. 



Em troca de cachês que começaram em US$ 10 mil e foram caindo até chegar a US$ 3 mil, os brasileiros iam a Durban, na África do Sul. Após uma semana de hospedagem num flat e mais alguns dias em ótimos hospitais, voltavam para o Brasil tendo deixado um de seus rins em corpos de israelenses ou norte-americanos. 

Os traficantes pretendiam abandonar a rota sul-africana e fixar-se no Brasil, utilizando um hospital do Recife para a realização de transplantes clandestinos, mas acabaram presos antes de levar o plano a cabo. A conexão Recife-Durban foi destaque na CPI do Tráfico de Órgãos realizada em 2004 na Câmara dos Deputados e evidenciou que o Brasil havia entrado de corpo(s) e alma no mercado negro internacional de órgãos. 

Não que o País fosse um novato nessa área. Dados do projeto Organs Watch, coordenado pela antropóloga Nancy Scheper-Hughes, pesquisadora da Universidade de Berkeley, na Califórnia, revelam que o Brasil coleciona histórias de roubo de órgãos e tecidos de cadáveres desde o regime militar. 

Produto legítimo da globalização, como o Google ou a Al Qaeda, o tráfico de órgãos é uma indústria que usa os corpos de pessoas pobres e saudáveis de países como Índia, China, Moldávia e Brasil como peças de reposição para ricos doentes de Israel, EUA, Europa, Japão. "Em geral, a circulação dos rins segue as rotas estabelecidas pelo capital, do sul para o norte, de corpos pobres para os ricos, de negros para brancos, de mulheres para homens ou de homens pobres para homens ricos", diz Nancy, que percorreu as principais rotas desse comércio, do Bazar de Órgãos de Mumbai, na Índia, às vielas das comunidades pernambucanas. 

Ao falar sobre o Brasil, Nancy aponta um problema: "Há aí doadores que vendem seus órgãos para supostos parentes". Especialistas suspeitam que a lei 9.434, de 1997, que disciplina os transplantes no País, tenha provocado um boom no mercado negro de compra e venda de rins ao liberar a doação entre pessoas sem parentesco. "A lei brasileira é permissiva. Em vez de proteger, fragiliza os mais pobres", diz o médico Volnei Garrafa, coordenador da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília. 

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